sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

RELATO FICCIONAL:

O HOMEM QUE LIVROU A CARA DO JUIZ
                   Deixar alguma coisa mais grave sair barato não era do seu feitio, embora não fosse particularmente dado a entrar em confusões. Mas, assim mesmo, deixara aquilo barato – e se perguntava ainda por que o fizera. Desde que aquela semente de pensamento malsão começara a germinar em sua mente, aquilo não lhe saíra da cabeça por um dia sequer e havia chegado, por isso, bem perto de realizar o ato extremo, embora sem o fazer: por quê?
                  Tudo começou quando o tal magistrado, crendo-se acima do bem e do mal, do bom senso, das leis e da fragilidade e falibilidade humanas, começou a fustigar e prender gente no povoado sem critérios que pudessem ser considerados justos ou jurídicos. Como os que ele prendia e fustigava eram tidos como gente torta por parte de seus inimigos, ninguém dizia nada – afinal, tratava-se de uma das mais altas autoridades do local, famoso até nas cortes mais altas que não raro mantinham e até aplaudiam suas decisões. Os jornais locais e até de outras províncias faziam o mesmo: aplaudiam, mesmo sabendo que a maior parte dos critérios utilizados pelo todo-poderoso não se sustentariam em um tribunal mais técnico ou sério.
                  Mas, diziam eles em uníssono, tratava-se de livrar o povoado dos maus elementos e de combater diversos crimes, não importando por quais meios. Era o falar repetitivo, embora o padre local, o literato e alguns homens de bem dissessem que aquilo não era justiça ... e, dentre eles, o sujeito de quem lhes falo. Notar, porém, que argumentar assim não mudaria nada, começou a deixa-lo inquieto e rebelado contra si mesmo. A atitude claramente ofensiva e ostensiva do tal magistrado despótico não poderia passar em branca nuvem e nem ser confrontada com passividade. Um dos condenados sem provas e sem direito razoável a defesa era para ele um amigo, embora nunca tivessem se conhecido ou falado – e não se deixam amigos na estrada (ou, no caso, na cadeia, cumprindo penas arbitrárias e injustas).
                 Começou a remoer o plano na cabeça atormentada: teria que despistar a família, buscar momento, arma e oportunidade exatos. Descobrir o trajeto e hábitos do mais novo herói local era fácil, pois, embora fosse descrito como pessoa de hábitos discretos, ostentava uma conta em rede social na qual se podia saber quem eram seus amigos mais próximos e a que se dedicavam. As gazetas locais também se incumbiam de divulgar alguns de seus compromissos sociais. Descobrir o bairro em que alguém mora, em tempos de internet, também era fácil – e o endereço de trabalho do juiz-alvo era óbvio, já que todos sabiam onde ficava o foro e qual a vara-altar a partir da qual o todo-poderoso juiz exercia seu arbítrio cotidiano há meses.
                   Tinha uma pistola velha, herança esquecida de um parente, guardada em seu cofre. A arma não tinha registro e a munição era velha. Sabia onde comprar munição e tinha dinheiro suficiente para isso e para a passagem, alimentação e vigília. Nada disso deixaria rastros, com os pagamentos em dinheiro e a discrição habitual que lhe era peculiar. Sabia misturar-se e ‘desaparecer’ na multidão. Era um tipo comum e tinha todo o necessário, inclusive paciência, para uma vigília bem feita. Um simples jogo de par ou ímpar indicou, na terceira tentativa, que levaria o plano adiante.
                   A oportunidade era dada por sua condição de aposentado e pelo fato de que os parentes e amigos que considerava como a sua família o deixassem a maior parte do tempo tranquilo. Bastava saber se a presa estaria disponível e em local certo e hora determinada nos dias a seguir. Pelas gazetas do povoado se sabia que sim, já que havia audiências marcadas para as semanas à frente e o ritual das prisões arbitrárias, e outras medidas intimidadoras e vexatórias, não cessara, tendo de fato se intensificado.
                  A localização do foro era favorável – cercado por áreas verdes e praça, era fácil achar o local preciso para uma tocaia sem ser importunado ... e esperar. E assim fez durante vários dias, até conseguir determinar com perfeição os hábitos, itinerários e horários do doutor. Alçado em sua onipotência, o julgador-mor local usava o serviço de um único agente judiciário, que também servia de seu motorista particular. Como não lhe importava se teria condição de fugir ou não, o arquiteto do plano se preocupava apenas em não falhar na tarefa que se designara, embora da leitura de contos policiais soubesse preparar uma rota de escape. Talvez fosse mais seguro acertar primeiro o agente e, depois, o juiz-marcado-para-morrer.  Matar o agente era um ônus no qual não pensara inicialmente, mas se fosse o único modo de eliminar o grande déspota e seus inúmeros malefícios ...
                Armado de seus ‘apetrechos’, preparou-se para o grande dia. Tinha que ser naquela quarta-feira, já que nos outros dias o juiz-celebridade dava palestras em universidades, cursinhos e associações de homens bons, ou recebia prêmios. Alguns afirmavam que o título de comendador já estava garantido, talvez uma medalha do pacificador, sem falar nos prêmios de homem do ano das gazetas.
                 O nervosismo foi crescendo, não pelo peso da empreitada à qual se autorizara, mas por pequenas dúvidas que surgiam: o agente teria família, talvez? E o juiz-monstro, também? E tomar a justiça nas próprias mãos, de maneira despótica, como fazia o que agora seria um mero alvo, não era um mau exemplo para todos? Além disso, não lhe vinha a certeza absoluta de que o plano de acabar pela raiz com o mal representado por um homem que se julga Deus melhoraria a condição dos submetidos por ele a desumanidades e da humanidade em geral. Matando-o, não estaria também querendo assumir o papel de Deus – caso existisse – e ajudando a canonizar o tirânico algoz que se valia de sua posição para açoitar desafetos?
                 A vontade de fazer algo a respeito dos desmandos, porém, se mostrou mais forte. Era quarta-feira e a tarefa precisava ser efetivada por alguém e era ele quem tinha, no momento, chance e condições de leva-la a cabo. Se fosse preso ou morto, não seria tão grave para si mesmo e para a maior parte dos que o conheciam e, quem sabe, para alguns passaria a ser ele o herói. Foi até o local da emboscada que, como de costume, estava bastante tranquilo. Algumas crianças brincavam na praça ao lado: se assustariam com disparos? Aquela não era hora de pensar nisso. Decidira que logo de manhã seria o período ideal, já que esse era o horário mais regular do cidadão que se julgava Deus e julgava outros como se Deus fosse, e a hora chegara.
               Tomado da certeza de sua missão, preparou a arma e as balas de reserva que comprara e ficou ali, fingindo ler uma revista – uma das várias que enalteciam o juiz-Deus em sua capa. Aquela edição, no entanto, era dedicada a enxovalhar a presidenta e sabotar o país, apenas. A vigília terminara: aproximava-se o carro, caro porém discreto, do magistrado-rei. Treinara tiro ao alvo em terrenos baldios e podia garantir que não erraria o alvo. O carro não era blindado, decerto – a velha Luger de oito tiros do tio-avô daria conta do recado se bem manejada. Destravou a trava de segurança. Enfim, ele o teria sob sua mira e poderia, de uma posição momentaneamente privilegiada, exercer sobre o onipotente magistrado o mesmo arbítrio e jugo que ele exercia sobre os que ele escolhia como suas vítimas.
                 Sem se dar conta do risco ao qual se submetiam, o juiz e seu segurança pararam no estacionamento externo, bem ao lado do foro, o que propiciava o ângulo perfeito para a ação, mas, na hora ‘H’, um carrinho de bebê e uma babá passavam. Ainda dava tempo, já que o juiz, despreocupado, resolvera vestir o paletó ali mesmo enquanto o agente trancava o carro. Mas o plano era primeiro eliminar o agente –  lembrou-se. Com os nervos já um pouco tensos, aguardou. Pronto, ia atingir o agente e, em seguida, o juiz-intocável bem em cheio, e depois ... um mendigo! Não era possível: um homem barbado e idoso, vestido com roupas velhas e puídas que não lhe assentavam direito, parado na linha de tiro olhando para ele e enxergando a pistola. O aceno negativo do velho mendigo o fez ter certa dúvida em atirar, mas pensou por um instante: “O que esse homem saberá sobre o que se passa aqui?” Novo aceno, uma pausa, e resolveu então lhe dar um crédito de sabedoria - talvez pela idade, ou por perceber que se até um mendigo reprovava seu ato extremo, que diria a sociedade e o trabalhador simples, do povo. Todavia, saiu dali sentindo-se melhor do que chegara.
                 Qualquer homem é vulnerável, e ele poderia ter ido até o fim se quisesse. Só não o fizera porque um homem comum, sem riquezas ou amparo, livrara a cara do magistrado-déspota que se achava Deus. Talvez quem tenha intervindo, caso exista mesmo, tenha sido o Deus de verdade, na pessoa do maltrapilho ancião, não para remissão terrena do justiceiro do povoado, mas para que a alma daquele  que queria justiça não se manchasse de sangue, já que se tratava de questão, diferentemente dos tribunais revolucionários, iminentemente pessoal – e não valeria a pena manchar as mãos com isso – ou será que vale ...? Deus o julgará, se existir.

Flávio B. Prieto da Silva

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