O HOMEM QUE LIVROU A CARA DO JUIZ
Deixar alguma coisa mais grave sair
barato não era do seu feitio, embora não fosse particularmente dado a entrar em
confusões. Mas, assim mesmo, deixara aquilo barato – e se perguntava ainda por
que o fizera. Desde que aquela semente de pensamento malsão começara a germinar
em sua mente, aquilo não lhe saíra da cabeça por um dia sequer e havia chegado,
por isso, bem perto de realizar o ato extremo, embora sem o fazer: por quê?
Tudo
começou quando o tal magistrado, crendo-se acima do bem e do mal, do bom senso,
das leis e da fragilidade e falibilidade humanas, começou a fustigar e prender
gente no povoado sem critérios que pudessem ser considerados justos ou jurídicos.
Como os que ele prendia e fustigava eram tidos como gente torta por parte de seus
inimigos, ninguém dizia nada – afinal, tratava-se de uma das mais altas
autoridades do local, famoso até nas cortes mais altas que não raro mantinham e
até aplaudiam suas decisões. Os jornais locais e até de outras províncias
faziam o mesmo: aplaudiam, mesmo sabendo que a maior parte dos critérios
utilizados pelo todo-poderoso não se sustentariam em um tribunal mais técnico
ou sério.
Mas, diziam eles em uníssono, tratava-se de
livrar o povoado dos maus elementos e de combater diversos crimes, não importando
por quais meios. Era o falar repetitivo, embora o padre local, o literato e
alguns homens de bem dissessem que aquilo não era justiça ... e, dentre eles, o
sujeito de quem lhes falo. Notar, porém, que argumentar assim não mudaria nada,
começou a deixa-lo inquieto e rebelado contra si mesmo. A atitude claramente
ofensiva e ostensiva do tal magistrado despótico não poderia passar em branca
nuvem e nem ser confrontada com passividade. Um dos condenados sem provas e sem
direito razoável a defesa era para ele um amigo, embora nunca tivessem se
conhecido ou falado – e não se deixam amigos na estrada (ou, no caso, na cadeia,
cumprindo penas arbitrárias e injustas).
Começou a remoer o plano na cabeça
atormentada: teria que despistar a família, buscar momento, arma e oportunidade
exatos. Descobrir o trajeto e hábitos do mais novo herói local era fácil, pois,
embora fosse descrito como pessoa de hábitos discretos, ostentava uma conta em
rede social na qual se podia saber quem eram seus amigos mais próximos e a que
se dedicavam. As gazetas locais também se incumbiam de divulgar alguns de seus
compromissos sociais. Descobrir o bairro em que alguém mora, em tempos de
internet, também era fácil – e o endereço de trabalho do juiz-alvo era óbvio,
já que todos sabiam onde ficava o foro e qual a vara-altar a partir da qual o todo-poderoso
juiz exercia seu arbítrio cotidiano há meses.
Tinha uma pistola velha, herança esquecida de
um parente, guardada em seu cofre. A arma não tinha registro e a munição era velha.
Sabia onde comprar munição e tinha dinheiro suficiente para isso e para a
passagem, alimentação e vigília. Nada disso deixaria rastros, com os pagamentos
em dinheiro e a discrição habitual que lhe era peculiar. Sabia misturar-se e
‘desaparecer’ na multidão. Era um tipo comum e tinha todo o necessário,
inclusive paciência, para uma vigília bem feita. Um simples jogo de par ou
ímpar indicou, na terceira tentativa, que levaria o plano adiante.
A
oportunidade era dada por sua condição de aposentado e pelo fato de que os
parentes e amigos que considerava como a sua família o deixassem a maior parte
do tempo tranquilo. Bastava saber se a presa estaria disponível e em local
certo e hora determinada nos dias a seguir. Pelas gazetas do povoado se sabia
que sim, já que havia audiências marcadas para as semanas à frente e o ritual
das prisões arbitrárias, e outras medidas intimidadoras e vexatórias, não
cessara, tendo de fato se intensificado.
A localização do foro era favorável –
cercado por áreas verdes e praça, era fácil achar o local preciso para uma
tocaia sem ser importunado ... e esperar. E assim fez durante vários dias, até
conseguir determinar com perfeição os hábitos, itinerários e horários do
doutor. Alçado em sua onipotência, o julgador-mor local usava o serviço de um
único agente judiciário, que também servia de seu motorista particular. Como
não lhe importava se teria condição de fugir ou não, o arquiteto do plano se
preocupava apenas em não falhar na tarefa que se designara, embora da leitura
de contos policiais soubesse preparar uma rota de escape. Talvez fosse mais
seguro acertar primeiro o agente e, depois, o juiz-marcado-para-morrer. Matar o agente era um ônus no qual não pensara
inicialmente, mas se fosse o único modo de eliminar o grande déspota e seus inúmeros
malefícios ...
Armado de seus ‘apetrechos’, preparou-se para
o grande dia. Tinha que ser naquela quarta-feira, já que nos outros dias o juiz-celebridade
dava palestras em universidades, cursinhos e associações de homens bons, ou
recebia prêmios. Alguns afirmavam que o título de comendador já estava garantido,
talvez uma medalha do pacificador, sem falar nos prêmios de homem do ano das
gazetas.
O
nervosismo foi crescendo, não pelo peso da empreitada à qual se autorizara, mas
por pequenas dúvidas que surgiam: o agente teria família, talvez? E o
juiz-monstro, também? E tomar a justiça nas próprias mãos, de maneira despótica,
como fazia o que agora seria um mero alvo, não era um mau exemplo para todos? Além
disso, não lhe vinha a certeza absoluta de que o plano de acabar pela raiz com
o mal representado por um homem que se julga Deus melhoraria a condição dos submetidos
por ele a desumanidades e da humanidade em geral. Matando-o, não estaria também
querendo assumir o papel de Deus – caso existisse – e ajudando a canonizar o tirânico
algoz que se valia de sua posição para açoitar desafetos?
A vontade de fazer algo a respeito dos
desmandos, porém, se mostrou mais forte. Era quarta-feira e a tarefa precisava
ser efetivada por alguém e era ele quem tinha, no momento, chance e condições de
leva-la a cabo. Se fosse preso ou morto, não seria tão grave para si mesmo e para
a maior parte dos que o conheciam e, quem sabe, para alguns passaria a ser ele o
herói. Foi até o local da emboscada que, como de costume, estava bastante tranquilo.
Algumas crianças brincavam na praça ao lado: se assustariam com disparos? Aquela
não era hora de pensar nisso. Decidira que logo de manhã seria o período ideal,
já que esse era o horário mais regular do cidadão que se julgava Deus e julgava
outros como se Deus fosse, e a hora chegara.
Tomado da certeza de sua missão, preparou a
arma e as balas de reserva que comprara e ficou ali, fingindo ler uma revista –
uma das várias que enalteciam o juiz-Deus em sua capa. Aquela edição, no
entanto, era dedicada a enxovalhar a presidenta e sabotar o país, apenas. A
vigília terminara: aproximava-se o carro, caro porém discreto, do magistrado-rei.
Treinara tiro ao alvo em terrenos baldios e podia garantir que não erraria o
alvo. O carro não era blindado, decerto – a velha Luger de oito tiros do
tio-avô daria conta do recado se bem manejada. Destravou a trava de segurança. Enfim,
ele o teria sob sua mira e poderia, de uma posição momentaneamente privilegiada,
exercer sobre o onipotente magistrado o mesmo arbítrio e jugo que ele exercia
sobre os que ele escolhia como suas vítimas.
Sem se dar conta do risco ao qual se
submetiam, o juiz e seu segurança pararam no estacionamento externo, bem ao
lado do foro, o que propiciava o ângulo perfeito para a ação, mas, na hora ‘H’,
um carrinho de bebê e uma babá passavam. Ainda dava tempo, já que o juiz, despreocupado,
resolvera vestir o paletó ali mesmo enquanto o agente trancava o carro. Mas o
plano era primeiro eliminar o agente – lembrou-se. Com os nervos já um pouco tensos, aguardou.
Pronto, ia atingir o agente e, em seguida, o juiz-intocável bem em cheio, e
depois ... um mendigo! Não era possível: um homem barbado e idoso, vestido com
roupas velhas e puídas que não lhe assentavam direito, parado na linha de tiro
olhando para ele e enxergando a pistola. O aceno negativo do velho mendigo o
fez ter certa dúvida em atirar, mas pensou por um instante: “O que esse homem
saberá sobre o que se passa aqui?” Novo aceno, uma pausa, e resolveu então lhe
dar um crédito de sabedoria - talvez pela idade, ou por perceber que se até um
mendigo reprovava seu ato extremo, que diria a sociedade e o trabalhador
simples, do povo. Todavia, saiu dali sentindo-se melhor do que chegara.
Qualquer homem é vulnerável, e ele poderia ter
ido até o fim se quisesse. Só não o fizera porque um homem comum, sem riquezas ou
amparo, livrara a cara do magistrado-déspota que se achava Deus. Talvez quem
tenha intervindo, caso exista mesmo, tenha sido o Deus de verdade, na pessoa do
maltrapilho ancião, não para remissão terrena do justiceiro do povoado, mas
para que a alma daquele que queria
justiça não se manchasse de sangue, já que se tratava de questão, diferentemente
dos tribunais revolucionários, iminentemente pessoal – e não valeria a pena
manchar as mãos com isso – ou será que vale ...? Deus o julgará, se existir.
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