Temos
visto, ao longo dos anos de 2013 e 2014, eclodirem no Brasil demandas com
relação, supostamente, a mobilidade e moradia. Sabe-se que por trás de muitos
desses movimentos e protestos há partidos organizados cujos quadros de apoio se
encontram, em boa parte, dentro do meio acadêmico. Então, longe de serem meras
demandas espontâneas da população, são movimentos induzidos com uma
fundamentação argumentativa que parece, à primeira vista, consistente e
bem embasada, mas cuja própria elaboração já denunciaria, por si
só, que não se trata de movimentos autônomos e puramente espontâneos. De qualquer
modo, o que nos é apresentado como razões indiscutíveis pode e deve, sim, ser
discutido. E a partir dessa discussão, hoje tida como algo que busca
hegemonizar-se, pode-se estabelecer o quanto esses movimentos têm de
oportunismo ou de
autêntico e legítimo, ainda que servindo às vezes mais como um pretexto para
manifestações e para dar visibilidade às demais agendas desses partidos e a
seus representantes institucionais.
Vamos, então, aos fatos: há problemas
de moradia e mobilidade? Sim, tais problemas já existem no Brasil há décadas, ou melhor, há séculos, e estão sendo
enfrentados no momento com políticas públicas, ao contrário do que se tenta
fazer crer. Algumas dessas iniciativas são o ‘Minha Casa Minha Vida’, vigoroso programa
de habitação federal, aliado a programas habitacionais estaduais e municipais, sistemas
de ônibus e vias expressas, ampliação e construção de metrôs e VLTs e criação do bilhete
único. O Passe Livre, Vale-Transporte e todas as gratuidades já existentes não são levados em
consideração por quem reclama dos preços de tarifas – mesmo que saibamos que
esses benefícios já atingem a maior parte dos usuários dos transportes
públicos, uma vez que são instituídos por lei e favorecem estudantes da rede
pública, idosos, pessoas com necessidades especiais e trabalhadores
assalariados que ganham de 1 a 5 salários mínimos. O principal problema então,
de fato, não seria o custo e sim a qualidade e frequência dos serviços. Isso só
pode ser resolvido com aumento da oferta de transportes e com a fiscalização
adequada e multas pesadas para quem descumpre as normas da concessão, já que se
trata de transportes públicos concedidos. A alegação de que não há
fiscalização adequada pelo fato de alguns empresários ajudarem a financiar as
campanhas de alguns políticos não inibe ou impede a ação fiscalizadora do Ministério
Público, agências reguladoras e a atuação do Judiciário, que são órgãos e
poderes que independem do Executivo local, fato que os argumentos
‘absolutizantes’ omitem ou tentam ocultar.
As cidades brasileiras não são, na sua quase
totalidade, planificadas. Sua criação e crescimento obedeceram mais a fatores e
necessidades contingentes. Assim mesmo, atendem, na medida do possível, às
funções de constituírem espaços relativamente organizados para moradia,
trabalho, mercado, lazer, estudo e tantas outras que se fazem necessárias.
Nenhuma cidade é ideal, já que as vantagens de um tipo de organização também incluem
desvantagens, se comparado a outros tipos de organização existentes ou
imagináveis. Cada cidade tem uma conformação topográfica, população, tamanho e
limites naturais e artificiais e atende a determinadas funções específicas.
Ainda assim, é possível definir políticas públicas de planejamento urbano para
que possam atender melhor a todas as funções existentes e necessárias. Três
delas, de transporte, trabalho e moradia, estão interligadas, dada sua natureza
interdependente. Outras questões importantes a serem levadas em conta são a da
superpopulação de alguns centros urbanos e os limites naturais.
Embora se postule que as pessoas devam
morar, de preferência, perto do trabalho – princípio já advogado pela escola
urbanista francesa dos anos 20, 30 e 40 do século XX – nem sempre é possível
encontrar espaços adequados e disponíveis para construir onde há oferta variada
de trabalho, ou oferecer empregos nas áreas disponíveis para construção de
novos núcleos habitacionais. Curiosamente, apesar do problema conhecido e
criticado da superpopulação de vários centros urbanos brasileiros, advoga-se
que se criem condições para que os excluídos venham a morar dentro desses
grandes centros, mesmo em áreas naturais preservadas, inchando-os, e que jamais sejam removidos
ou realocados em periferias. A justificativa é que remover agrava o problema do
transporte ou inviabiliza o trabalho. Mas então, não seria talvez o caso de buscar
meios de criar oferta de trabalho onde se pode construir novos bairros e
cidades sem inchar ainda mais as já abarrotadas metrópoles e megalópoles?
Sabemos como as áreas de livre ocupação
urbana se formam: uma pessoa ou família se instala em um local do qual não é
proprietária e ali consegue permanecer sem ser molestada. Aos poucos, outras
pessoas e famílias vêm se instalar ao lado e chamam parentes e amigos que vivem
em outros locais (às vezes bem distantes) para se instalarem ali também. O
‘bairro’ cresce de maneira mais desordenada que as cidades, que contam pelo
menos com estrutura básica de saneamento, ruas, praças e outros serviços
públicos em geral ao se formarem. Como se trata de apêndices dentro ou bem ao
lado de alguma cidade, geralmente se utilizam de maneira clandestina de
serviços como luz, água e até internet e televisão a cabo, descarregando lixo e esgoto
em encostas, aterros, lagoas, rios, mar ou onde for possível. A partir daí, as pessoas que moram ali
tentam se integrar à população e hábitos do bairro e se inserir de algum modo no mercado de trabalho local, passando também a usar serviços públicos existentes de escolas, hospitais, transportes, etc.
Nada de mal intencionado nisso, uma vez que
são estratégias de sobrevivência, mas tais práticas, de certo modo, sabotam
qualquer tentativa de planejamento e regulamentação urbana. Se cada um pode
construir onde, como e quando quer, não há norma que valha ou possa ser
aplicada e não há planejamento possível. Isso não se aplica só às populações
excluídas, mas também aos que modificam imóveis e áreas de modo arbitrário e
fora das posturas municipais, inclusive em áreas de preservação, mesmo se
tratando de pessoas e empresas com recursos. Portanto, se se deseja uma cidade
minimamente planejada e viável, tem-se que impedir as violações das normas por
quem quer que seja e tentar garantir que essas normas sejam objetivas e
coletivamente benéficas.
Criminalizar remoções ou a atuação
fiscalizadora das prefeituras é, portanto, algo que também não resolve o
problema urbano. O que se pode exigir é que, quando necessária e legal, a remoção
seja feita com aviso prévio e que os locais e imóveis para onde sejam removidos
apresentem condições boas e contem também com a infraestrutura de bairro
necessária para darem sequência a suas vidas de maneira digna. O ideal, no entanto, seria estudar as razões
do êxodo das pequenas cidades e áreas rurais para entender o que leva milhares
de pessoas e famílias a migrarem para os grandes centros, inchando-os, e buscar
criar as alternativas locais que solucionem esse problema. Quanto à criação de
oportunidades de trabalho, o papel do Estado é indutor, podendo ele favorecer a
instalação de determinados empreendimentos por meio de incentivos fiscais, mas
nunca se pode ofertar todos os empregos existentes em um grande centro e evitar
por completo a necessidade de deslocamentos, portanto não há como eliminar
totalmente esse problema, o que nos traz de volta à questão de bons e adequados
sistemas de transporte público. A criação da tarifa social poderia ser mais uma
solução, já que nem todos são idosos, trabalham ou estudam, ficando fora,
assim, das gratuidades e benefícios já existentes.
Outras considerações possíveis diriam
respeito a criar-se mais espaços de lazer e interação social. Isso já existe em
muitos bairros que contam com praças, quadras públicas de esportes, cineclubes
e tendas de shows a preços populares ou espaços públicos naturais tais como
parques, praias, etc. Já existem leis de meia entrada para idosos, professores
e estudantes em cinemas, teatros e shows, mas poderiam, também aí, criar uma
tarifa social e mais centros de interação social múltipla – papel hoje
desempenhado por algumas associações comunitárias, escolas e universidades
públicas e entidades sindicais ou patronais do tipo SESC e SESI, além de clubes
privados. O vale-cultura, criado por lei recente, também pode ser utilizado, à
escolha de seus beneficiários, para esse tipo de lazer. O importante, também, é
que organismos estatais e paraestatais criem mais oferta desses serviços e
espaços em áreas hoje consideradas como de exclusão ou exclusão parcial, para que
seus moradores não fiquem relegados a shoppings e alternativas puramente comerciais, geralmente
pagas.
Em todo caso, é relevante
notar que, assim como as cidades e bairros não surgem da noite para o dia, seus
problemas e soluções também vão aparecendo gradativamente. Nem tudo é caos ou
ordem, nem tudo é utopia ... cidade é solução e problema, permanência e movimento,
planejamento e anarquia. E o direito não se restringe à cidade e a indivíduos e grupos, mas ao país e,
em última análise, à vida coletiva e ao planeta.
Flávio Braga Prieto da Silva
Em tempo: ocupações induzidas indiscriminadas não ajudam a resolver problemas de moradia, já que são feitas por critérios mais políticos que sociais e humanitários e não levam em conta caminhos mais pacíficos e racionais de solução da questão.
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