THOREAU E A DESOBEDIÊNCIA CIVIL (por Flávio Prieto)
Acabo de ler "A Desobediência Civil', do pensador
estadunidense Henry David Thoreau, mais conhecido como um dos expoentes do
anarquismo individualista. Ensaísta, poeta e precursor de experiências de vida
despojada junto à natureza, Thoreau viveu entre 1817 e 1862 em Massachusetts,
Estados Unidos, não chegando a completar 45 anos de existência em razão de uma
tuberculose contraída ainda na adolescência.
Seu famoso ensaio "Resistance to Civil
Government", publicado em 1849 e muitas vezes citado e traduzido como
"A Desobediência Civil" é uma obra de poucas páginas, escrita em
estilo vigoroso e direto. Para entendê-la melhor, é necessário ter em conta o
quadro social e político da época em que Thoreau viveu. Parte dos estados e
cidadãos norte-americanos repudiavam a escravidão, enquanto outros apoiavam-na
e valiam-se dela, em especial os estados sulistas que se utilizavam dessa mão
de obra intensivamente na agricultura e para trabalhos diversos, incluindo os
domésticos. Tais divergências resultariam na Guerra da Secessão (1861 a
1865). A guerra de conquista contra o México (1846 a 1848), com a consequente
invasão de seu território e anexação de terras, é outro dado importante para
entendermos o pensamento de Thoreau.
Basicamente,
Thoreau critica qualquer submissão cega ao Estado e a governos e propõe que a
consciência individual seja a bússola que orienta cada indivíduo a cumprir ou
não as leis e quaisquer outras imposições sociais. Usa como exemplos
ilustrativos para justificar tal insubmissão as guerras injustas e a escravidão
desumana. Também rejeita a cobrança de determinados impostos e taxas (na época
havia, segundo relatos, taxas cobradas até pelo clero) que, segundo ele,
resultavam em serviços desnecessários ou apenas ajudariam a financiar um
sistema injusto e autoritário de castas. Dizia que se um único cidadão se
opusesse a isso ele constituiria a maioria verdadeira, pois estaria agindo de
acordo com sua consciência e sob critérios de justiça mais elevados e válidos,
sendo portanto o único realmente livre, ainda que estivesse preso.
Salvo
os poucos dias em que esteve preso, até que uma tia pagasse uma divida fiscal
em seu desfavor, Thoreau viveu como um homem livre, preferindo por dois anos e
dois meses morar isolado em uma cabana que ele mesmo construiu na propriedade
de seu célebre amigo e também poeta e pensador Ralph Waldo Emerson, às margens
de um lago no bosque de Walden. Seu pensamento e atitudes condizem bastante com
as circunstâncias da época em que viveu, na qual alguns homens sentiam-se de
fato sufocados por um governo e sociedade de cunho bastante autoritários e
belicosos, cujos canais de expressão e participação social e política dos
cidadãos eram bem mais escassos que hoje.
Resta
saber como funcionaria o Estado ideal sem governo imaginado por Thoreau,
expresso parcialmente, de maneira não totalmente definida, em algumas de suas
propostas individuais. Como bem explica ele, a existência de governos e do
próprio Estado se credita a determinadas conveniências coletivas e, também,
para solucionar conflitos entre indivíduos. Todavia, se a prática do
respeito às leis e às autoridades eleitas por maioria - critério duramente
criticado por ele - dependesse apenas do esclarecimento e consciência
individuais, seria impossível ter-se um Estado até mesmo para resolver
tais conflitos e conveniências coletivas. Ele afirma que uma entidade abstrata
de pessoas não é dotada de consciência - mas se as pessoas que a compõem
a tiverem, poder-se-ia então falar em uma entidade dotada de consciência. E, no
entanto, como sabemos, tal conceito e sua amplitude e sentido diferem de
indivíduo a indivíduo de maneira substancial. Sem uma organização prévia e sem
recursos previstos, estabelecidos anteriormente por normas claras e efetivas,
como governar, mesmo que se trate de um auto-governo coletivo? E como definir o
que é socialmente aceitável ou não, em um sistema baseado no primado da
subjetividade, uma vez que a sociabilidade é um dado da vida humana na Terra?
Infelizmente, ele não está mais aqui para nos iluminar sobre esse tema ...
HENRY THOREAU - CABANA EM WALDEN |
Tive uma fase de intensa leitura anarquista, a qual contemplou Thoreau também, mais ou menos no ano 2000. Não me converti, mas aceitei algumas influências bacanas, como de Piotr Kropotkin. Quanto à Thoreau, não se trata de um cientista, mas quase de um poeta. Li o seu pequeno livro, a desobediência civil, como uma espécie de brado, com toda fúria possível, a partir do cidadão oprimido por obrigações "inventadas" na sua época. Lembremos que os EUA eram para ser a "land of free" e a "home of the braves".
ResponderExcluirComo você bem frisou, não faz sentido lê-lo sem o contexto devido. E também penso que não podemos exigir dele, que não expõe uma teoria política e sim externa sua angustia com as coisas que vivia, uma concepção de Estado.
Outros autores anarquistas tratam melhor do que seria a inexistência de um poder estatal constituído, mas ainda assim uma vida subordina à coletividade.
Isso remonta a Aristóteles, que classifica as espécies entre as gregárias (koinonia) e as solitárias (monadika). As duas ainda podem se subdividir entre as sociáveis (politika) e as que vivem de maneira esparsa (sporadika). Assim a natureza biológica (zoe) humana é gregária, e se materializa no meio (a vida como "bios", ou modo de vida) de forma social. A cidade surge naturalmente. Artificial é viver numa cabana, como Thoreau, o Unabomber, e outros eremitas.
Um autor anarquista que me marcou foi o norte americano Murray Bookchin. Li seu "municipalismo libertário". Ao invés de grandes nações, com todo poder bélico e policial que concentram, a divisão social se daria entre municípios, onde cada indivíduo estaria próximo das decisões coletivas o suficiente para que não fosse apenas um átomo como acontece hoje. Gostei disso, e depois encontrei isso também em Rousseau, que diz que a melhor constituição para os estados é no sentido de evitar os potentados (ele elaborou um projeto de constituição para a Córsega que era a matéria-prima do meu Mestrado).
Valeu pelo esclarecimento, Marco. Muito interessantes suas observações. Por acaso, quando dava aulas de Inglês, tive um aluno que me pedia para traduzir os poemas dele - ou seja, conheci-o antes como poeta. Alguns antropólogos dizem que o pensamento lógico deriva do uso da palavra, que é uma prática social.
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