Reconheçamos as injustiças históricas, reconheçamos a exclusão, reconheçamos que o acesso aos bens culturais e às oportunidades de crescimento social tem sido diferenciado desde o nascimento, reconheçamos a existência de relativa correlação entre exclusão e grupos étnicos. Tudo isso reconhecido, analisemos o critério de cotas raciais, ou seja, de reserva de vagas no ensino superior por um critério étnico/racial. Raça, a rigor, só existe a humana - o que há são diferentes grupos étnicos, hoje bastante diluídos pela miscigenação. Segundo pesquisas genéticas, nosso país é um dos mais miscigenados do mundo. Houve, portanto, significativo grau de mistura entre os que colonizaram a terra e os que foram colonizados, ou vieram como escravos. Esse grau é tão elevado que se reflete nos hábitos culturais: nossa cultura deixa claro que a mistura sempre foi a tônica, pelo menos nos últimos 400 anos. Há brancos no samba, negros na bossa, artistas plásticos de ambos os grupos, atores e cantores negros e mestiços célebres, cultura compartilhada - branca, negra e índia, com manifestações híbridas - desde a culinária à música - ao longo desse período.
Todo o citado não elimina o racismo e a discriminação, por certo, mas reduz bastante a correlação direta entre miséria, indigência cultural e etnia: cada grupo tem sua cultura e suas estratégias de sobrevivência próprias e a mistura também se dá aí, como prova da interculturalidade e miscigenação. Cria, todavia, uma dificuldade de se estabelecer critérios objetivos de carência ou merecimento com base em 'raça'. Há pessoas que estão na situação limite entre a 'branquitude' e a 'negritude', ou entre estas e a condição de 'autóctone', e também os que apesar de pertencerem aparentemente a um desses grupos, partilham dos modos de vida atribuídos a outros. E há pessoas que apesar de 'negras ou pardas', 'índias ou caboclas' não precisariam de cotas e outras que, apesar de terem aparência predominante caucasiana, necessitariam delas.
O racismo, e principalmente a discriminação, existem dentro do indivíduo, independente de sua origem étnica ou social, embora estas práticas sejam socialmente adquiridas, geralmente. Discriminam-se idosos, mulheres, homossexuais, deficientes físicos e mentais, feios, magros, gordos, pobres, tudo o que consideramos diferente: isso ocorre diariamente, sem ser criminalizado. Essas discriminações certamente são indesejáveis, também excluem e também criam enormes dificuldades para a vida em sociedade - inclusive em termos de inclusão no mercado de trabalho para os considerados diferentes. É tão criminoso discriminar um negro quanto um gordo, um homossexual, um estrábico, um deficiente físico ou alguém com problemas mentais. Além dessas considerações, acentuemos que há racismo e discriminação endógenos, dentro dos próprios grupos que formam nossa sociedade multiétnica, além de racismos reversos ...
Qual seria a solução? Quanto à questão da inclusão, ampliar as cotas, estabelecendo como critério o de necessidade objetiva: todos os que necessitam podem se candidatar a elas, os que não necessitam ficam de fora. O critério socioeconômico, de necessidade objetiva, é o mais justo e menos relativo - não depende de autodeclaração e nem de avaliações subjetivas. Quem se encontra em condição de exclusão ganha, quem já está incluído pode prescindir dessa ajuda. Também seria importante dar maior acesso aos bens culturais, ampliando sua democratização. Quanto à questão das discriminações, criminalizar tais condutas e estimular uma cultura de aceitação das variadas diferenças e de igualdade de oportunidades para todos, indistintamente, lutando para reduzir-se inclusive as disparidades econômicas. Quanto à questão, finalmente, da reparação simbólica, ela teria que se dar no campo do simbólico. Um pedido de perdão oficial pelo governo, em nome dos que governavam em tempos da escravidão e do aprisionamento de indígenas, já é um início. Reconhecer publicamente e preservar a verdadeira história e cultura desses grupos formadores de nossa sociedade miscigenada também seria bastante salutar.
Uma cota racial estabilizadora, com o fim de acelerar a reparação das das diferenças históricas, pode se tornar um novo fator de diferenciação entre pessoas e acirrar velhos antagonismos, penso eu. Se isso pode ser feito por outra via que não discrimine por raça ou cor (a cota faz isso), seria preferível. O que é melhor: vários tipos de cota, para vários tipos de exclusão histórica ou atual, ou uma única cota, por critério objetivo de necessidade real? Sei que alguns me entenderão mal - mas tenho antepassados de várias etnias, estudei em escolas públicas, vivi próximo a áreas de risco, morei em quarto e sala com cinco pessoas, apesar de visualmente pertencer ao grupo tido como socialmente privilegiado, e já fui discriminado por ter sido extremamente magro e ter tido aparência pobre ...